\ A VOZ PORTALEGRENSE: Günter Grass e os Soviéticos

quinta-feira, setembro 14, 2006

Günter Grass e os Soviéticos

Günter Grass diz que “era jovem e no fundo estava de acordo”
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O escritor alemão afirma que das SS apenas sabia que eram as unidades melhor equipadas, e que nunca se viu envolvido em nenhum crime de guerra
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O sentimento de vergonha de Grass foi aumentando com o tempo, à medida que ia sabendo os crimes de que as SS eram responsáveis
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Após a edição da autobiografia Descascando a Cebola, em que reconhecia ter pertencido às Waffen SS, forças de elite alemãs, nos últimos meses da II Guerra Mundial, Günter Grass oscila entre o ataque dos críticos habituais, e de alguns amigos desiludidos, e o apoio dos leitores que compram o livro em grandes quantidades. Entre a necessidade de justificação e a defesa. Entre a aceitação do que fez e a necessidade de tempo para perceber por que o fez.
Ontem, o diário espanhol El País publicou uma entrevista com o escritor alemão, na sua casa isolada com vista para o mar Báltico, em que estes temas são panos de fundo. Primeiro, afirma que sempre teve “grandes reservas em escrever algo autobiográfico”, pois o autor tem que trabalhar com memória, as recordações, e “sabemos que a memória tende a embelezar situações, a apresentar questões muito complexas de uma forma suficientemente simples para as tomar narráveis”.
Sobre a sua estadia na Divisão Frundsberg das SS, tristemente famosas pelas suas atrocidades e crimes de guerra, Grass diz que quando as integrou apenas sabia que eram unidades de elite, melhor equipadas que as restantes, mas que também eram as que sofriam mais baixas.
“Era tudo o que sabia. Mas era novo, queria sair de casa. E no fundo estava de acordo.” E reafirma que apenas depois da guerra foi tendo conhecimento das atrocidades cometidas pelas SS. “Nunca acaba a vergonha de ter estado numa unidade como esta, embora graças a Deus nunca me tenha envolvido em nenhum crime de guerra”, declara o escritor.
Das acções das SS foi tendo consciência após a guerra, e o sentimento de vergonha, pela pertença à unidade e pela ocultação desse facto, foi aumentando com o tempo, à medida que ia vendo e sabendo de todos os crimes de que eram responsáveis as SS e “a culpa geral de todo aquele sistema alemão que recaía sobre nós”.
O intelectual de 78 anos, considerado a consciência moral do seu país, reflecte também sobre o seu não questionamento durante a guerra, enquanto iam desaparecendo o seu tio, que trabalhava nos Correios polacos e um amigo do colégio, um padre que ensinava latim. “Nunca me questionei. E isso sempre me perseguiu.”
O realizador Volker Schlondorff, que adaptou ao cinema o livro de Grass O Tambor, afirmou que continua a admirar e a ser amigo do escritor, mas já não o coloca num pedestal. Grass responde que pode ser criticado, e que é o primeiro a aceitá-lo, mas também reclama para si “o direito de ocultar as minhas questões até encontrar formas de expressar”.
E exemplifica com A Passo de Caranguejo, que trata da sorte dos alemães na zona ocupada pelo Exército Vermelho soviético. “Apenas ao escrever este livro pude falar da repetida violação da minha mãe soldados russos. É essa a complexidade do processo literário que se faz assim para trás, em passo de caranguejo.”
Por fim, e ainda respondendo às criticas de ter ocultado o seu passado, diz que “falar do passado não pode significar saldar contas presentes, é um abuso do passado tirado do contexto”. Os primeiros dias após a edição de Descascando a Cebola foram “muito difíceis”.
“Quiseram liquidar-me como pessoa e calar-me para sempre”, recorda, “mas depois chegou compreensão e apoio de escritores. Agora, com o livro à venda, chega-me o alento dos leitores. E é verdade este livro me modificou, pois através dele aproximei-me mais do meu pai e da minha mãe.”
in, PÚBLICO . SEGUNDA-FEIRA, 11 SET 2006, CULTURA 27
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A entrevista de Günter Grass ao jornal espanhol é importante. Dela, comprova-se a necessidade, que em 17 de Agosto aqui assinalámos, da leitura de ‘A Passo de Caranguejo’, ao então escrevermos: - «O livro de Günter Grass é de leitura obrigatória para quem quiser conhecer o sofrimento do Povo Alemão durante a Segunda Guerra Mundial.»
A sua autobiografia trará por certo outros motivos de interesse, e lê-la-emos quando existir tradução para inglês, francês ou espanhol, porque para português, dificilmente acontecerá
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Mário Casa Nova Martins