\ A VOZ PORTALEGRENSE: João Camossa, 1926-2007

domingo, outubro 21, 2007

João Camossa, 1926-2007

EM PAZ
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João Camossa
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1926-2007 O monárquico anarquista
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Pedro d' Anunciação
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ACTIVISTA monárquico, opositor ao antigo regime, fundador do Centro Nacional de Cultura e do PPM, João Carlos Camossa Saldanha morreu terça-feira, aos 81 anos, de síncope cardíaca. Passou pelas prisões do antigo regime, por ter participado activamente, entre outras acções, na Revolta da Sé (1959) e no Golpe de Beja (1961). Gonçalo Ribeiro Telles, amigo antigo e companheiro político, recorda ter sido necessário a certa altura recorrer a cunhas, junto de gente do regime, para o tirar da prisão do Aljube, num estado de fragilidade física extrema.
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JOÃO Camossa bebeu as suas opções políticas em casa. O pai, comandante Augusto Carlos Saldanha, fora um dos oficiais de Marinha que não se rendera à República em 1910. João era filho de um casamento tardio. O comandante Saldanha, afastado da Marinha, acabara por se empregar como director de uma companhia de seguros.
Camossa começou a dar nas vistas no liceu, onde conheceria alguns dos amigos de toda a vida. Um desses amigos, que o albergou nos últimos anos, o médico Jacinto Simões, lembra que o achou logo «um original». A palavra seria também usada por Ribeiro Telles para o qualificar. Luís Coimbra, que o conheceu mais tarde, quando ainda muito jovem o encontrou no Centro Nacional de Cultura a fazer cursos de formação política, é mais concreto: «Ele era um anarquista».
Assumindo sempre uma posição tradicionalista (não escondia as suas simpatias pelo miguelismo), levou a sua atitude monárquica a um radicalismo que acabou por o afastar dos outros monárquicos tradicionalistas – os da Causa Monárquica, capitaneados por Fezas Vital, que se acomodaram ao salazarismo – e o aproximar de todos os movimentos de oposição ao regime.
No julgamento do Golpe de Beja, enquanto a defesa dos implicados procurava alicerçar-se nos princípios democráticos da Constituição de 1933 que o regime atropelava, Camossa distanciava-se e afirmava a sua atitude revolucionária de rejeição absoluta da Constituição republicana e corporativa.
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LIGOU-SE ao grupo de Ribeiro Telles, Francisco Sousa Tavares, Fernando Amado e Rodrigo Costa Félix, que se intitulavam os 'Monárquicos Independentes de Lisboa', desde os tempos estudantis. Com eles, João Camossa, além das acções revolucionárias, da Convergência Monárquica (por oposição à Causa Monárquica) e das listas da CEUD, participou na fundação do Centro Nacional de Cultura, antes do 25 de Abril, e do PPM, após a Revolução.
Propenso a uma vida boémia e de álcool, chamavam-lhe a certa altura «o agitador das leitarias». Entrava nessa espécie de pastelarias baratas, a emborcar bagaços e a proclamar as suas ideias.
Licenciado em Direito, exerceu a advocacia e chegou a ter escritório com um amigo, Almeida Monteiro. Mas o desprezo aristocrático pelo dinheiro levou o escritório à falência. Camossa passou a despachar os assuntos profissionais à mesa de um pequeno restaurante da Av. da República, o Sequeira. A clientela era naturalmente angariada na sua vida de boémia nocturna: uns motoristas de táxi, umas prostitutas, pessoas que se viam enredadas em dificuldades legais. Além dos acusados políticos, naturalmente.
Num julgamento, o juiz quis passá-lo de advogado a arguido e mandou-o despir a toga. Ele já devia estar à espera e não levava roupa por debaixo da toga.
Acabou impedido de exercer advocacia, embora obrigado a pagar impostos. Isso levou-o a um confronto com a Ordem dos Advogados, que nunca mais resolveu. Mesmo quando um bastonário pós 25 de Abril (penso que Júlio Castro Caldas) quis promover a reconciliação de Ordem com Camossa para poder atribuir-lhe uma pensão, este rejeitou.
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COMEÇOU a ser consumido pelo bagaço e a consumir também o que herdara dos pais. No fim, vendeu os móveis e até os livros da grande biblioteca paterna. Às vezes, quando queria viajar, metia-se a pé pelos caminhos. Daí o ser capaz de desenhar de memória mapas detalhados das regiões - um dos seus feitos que impressionava Ribeiro Telles. Acabou por se acolher em casa de um amigo dos tempos do liceu, de que era compadre (padrinho de uma filha), o prof. Jacinto Simões. Apesar de Camossa ser católico e monárquico e Simões maçon e ateu, havia ali alguns pontos de convergência. Lembro-me dos tempos em que ele, no Snob, bar de jornalistas, com o copo de bagaço na mão, comentava com um riso rebelde a condição de maçon de Jacinto Simões, afiançando que ele próprio pertencia a uma ordem secreta católica tradicionalista.
Mas Simões pôs-lhe como condição, para o ter em casa, que abandonasse o álcool. E assim desapareceu há anos das leitarias e bares de Lisboa. Saía de casa sobretudo, agora sóbrio e discreto, no seu velho blazer azul com gravata e calças cinzentas, para frequentar as igrejas.

in, SOL – 20 OUTUBRO 2007 – P.27