\ A VOZ PORTALEGRENSE: António Martinó de Azevedo Coutinho

terça-feira, janeiro 26, 2010

António Martinó de Azevedo Coutinho

A SEGUNDA MORTE DE JOSÉ DURO
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A intervenção que, sob o alibi Polis, foi concretizada no antigo jardim da Corredoura constitui significativo paradigma da qualidade local atingida pela complexa operação urbanística e ambiental.
Naturalmente, toda a comunidade reconhecia a necessidade de melhorar as degradadas condições em que a Corredoura então se encontrava; após o “arranjo”, poucos portalegrenses apreciarão as soluções inventadas a propósito. Interrogamo-nos sobre os altos e dispendiosos muros atrás dos quais se escondeu o Calvário, sobre a radical eliminação do clássico lago e do parque infantil, sobre a ineficaz iluminação pública “subterrânea” implantada, sobre o impróprio piso e os aberrantes bancos com que foi dotada a alameda central do jardim, enfim, sobre um conjunto de todo ilógico para o senso comum do lagóia normal, como somos quase todos nós.
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Porém, a cereja colocada no topo deste amargo bolo foi a bárbara destruição do memorial José Duro, há décadas ali implantado, expressão dos mais puros sentimentos lagóias, quando a gratidão e o respeito pela Cultura e pelos valores locais ainda eram praticados.
Depois, pouco a pouco, na linha da desorientação autárquica que vem caracterizando estes inícios do terceiro milénio portalegrense, alternaram-se na Corredoura precipitados remendos com ostensivas lacunas: alterou-se todo o sistema de iluminação, manteve-se a inoperacionalidade dos inestéticos tanques que substituiram o lago, implantou-se um caricato e repelente “monumento” em vez do memorial, assistiu-se impassivelmente (desde há anos!) à derrocada de parte do “romântico” morro sobrevivente, instalou-se à pressa, em “adequada” época eleitoral, um improvisado equipamento lúdico... E por aí fora.
Só não sentimos a impossibilidade prática de aí ser reinstalado um “clássico” cenário das Festas da Cidade porque a autarquia, estrategicamente, as extinguiu!
O mais recente capítulo destas renovadas intervenções é constituído pela desesperada tentativa de ressuscitar o memorial José Duro. Bem intencionada decisão -ingenuamente pensam alguns- na busca de emendar o tosco arremedo antes inventado... Então, se foi oficialmente decidido reimplantar uma cópia do original, que se tivesse sido mais eficaz em tal falsificação seria o mínimo exigível.
O banco original, da autoria do pintor João Tavares, foi praticamente destruído, no interior do isolado e secreto gueto então ali instalado. Provavelmente, para além do medalhão central, apenas terão sido poupados os lanternins. Os painéis de azulejos e talvez as inscrições metálicas ali implantadas devem ter sido massacrados sem piedade.
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As imagens sobreviventes não devem ter sido recuperadas ou consultadas com a devida atenção, porque, naquilo que se constata na parte já construída, consideráveis diferenças se podem desde já anotar: a distinta dimensão do círculo central, a diversa curvatura das volutas laterais superiores e, sobretudo, a profunda alteração da “dedicatória” – Homenagem dos Estudantes (no tipo, no tamanho e na própria implantação dos caracteres).
Tudo isto seria já bastante para impedir a anulação do massacre perpetrado mas não é tudo. A considerável demora que tem caracterizado a obra, no melhor estilo dos trabalhos camarários locais, conserva o banco numa fase ainda bastante incipiente.
E é aqui que se nota uma suplementar -e também dispensável- intervenção, a de nocturnos e juvenis bandos libadores, seguramente de estudantes.
E enquanto os seus antecessores dos anos 40, a duas gerações portanto de diferença, ali levantaram um sentido memorial em homenagem ao desditoso poeta portalegrense que até na morte foi saudado como estudante, estes nossos contemporâneos preferem conceder ao putativo monumento uma bem diversa utilização: a de propício local de “copofonias”.
Em boa verdade, quase ninguém teria a estranhar ou criticar tal opção, não fossem os ostensivos vestígios e as aberrantes intervenções produzidas a pretexto desses noctívagos repastos.
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Para além dos restos, copos, garrafas, papéis e embalagens diversas com que deliberadamente emporcalham o ambiente, quando logo ali ao lado está colocado um recipiente adequado à recolha de tais detritos, para além disso os descuidados convivas têm levado consigo algumas “recordações”, como letras recentemente implantadas, primeiro os caracteres E-S-T-U-D-A-N-T-E-S e depois o S da anterior palavra. Por enquanto...
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Como grotesca homenagem, talvez poucas seriam tão imaginativas. Porém, os juvenis autores já se ultrapassaram em criatividade. Mais recentemente, como cuidada prova de atenção para com o medalhão ali patente, dedicaram-se à implantação de algumas delicadas “próteses” -leia-se “caricas” e passe a inerente publicidade- em adequados locais da efígie do poeta: ouvido, narina, olho e algumas madeixas do cabelo... Apenas terão esquecido a boca, protegida pelo bigode, para de todo o silenciar. É que ninguém é perfeito, nem sequer os vândalos, como aliás já abundantemente se verificou nas actuações autárquicas em apreço.
Nada é mais perigoso, arriscado ou injusto, do que as apressadas generalizações. Há anos assim aconteceu, quando a juventude portuguesa foi apelidada de rasca.
Nesta precisa actualidade, aqui e agora, conheço e admiro jovens dotados de invulgares qualidades, quer nos sentimentos íntimos, quer nos comportamentos sociais. Como aliás acontece e acontecerá em todas as épocas.
Precisamente por tudo isto, nem me atrevo a classificar os autores das proezas aqui relatadas (e ilustradas!) como pertencendo à tal juventude rasca. Creio que lhes será muito mais adequada a nomenclatura de juventude tasca.
Portalegre, Janeiro de 2010
António Martinó de Azevedo Coutinho