\ A VOZ PORTALEGRENSE: António Martinó de Azevedo Coutinho

segunda-feira, maio 21, 2012

António Martinó de Azevedo Coutinho

I - a falar é que a gente se entende...

Há pelo menos dois tipos de ditados populares: os que sobreviveram à corrosão dos tempos e dos costumes e os que ficaram pelo caminho. Se preferirmos uma classificação mais moderna, poderiam ser denominados, respectivamente, como “constitucionais” e “anticonstitucionais”. Sim, porque a política também interfere nesta distinção.
A falar é que a gente se entende é um antigo provérbio que, em numerosa companhia, fica hoje na terra-de-ninguém, entre as trincheiras onde se abrigam os dois grupos devidamente classificados. A razão é simples: mesmo falando nem sempre nos entendemos... Portanto, podemos incluir este ditado (ou provérbio) numa zona vagamente indefinida, ao alcance dos tiroteios verbais.
A verdade é que, quando esteve em pleno vigor, esta máxima dispunha de um valor absoluto. A palavra era, então, um penhor de honra. Dispensavam-se os papéis, onde a palavra escrita seria atestada, certificada e aparentemente garantida; a palavra oral era mais do que suficiente. Ficaram na memória das antigas crónicas dos negócios, aqui mesmo em Portalegre, o aperto de mão e a palavra dada como forma de selar, de modo quase sagrado, toda e qualquer transacção ou compromisso entre as gentes dos campos ou as da cidade.
Vieram-me estas coisas à lembrança por causa duma recente crónica semanal de amigo, que leio (também o vejo e oiço) sempre com prazer e proveito. Trata-se da secção Gurus, assinada pelo João Adelino Faria no suplemento/caderno Dinheiro Vivo, inserido no Diário de Notícias dos sábados. Intitulou-se tal crónica Focados e Estruturantes. Já ninguém morre. Todos falecem. O novo-riquismo da linguagem deixou os portugueses doentes.
Entre os diversos e curiosos exemplos do nosso quotidiano que o jornalista nos recorda, o humor roça a indignação. Vale a pena ler o texto, onde se mostra como o ridículo, na nossa linguagem corrente, se vem tornando norma, funesta e insensível. E, pior do que isso, vai-nos fazendo correr o risco de perdermos o verdadeiro significado e valor daquilo que todos chamamos de bom português. Com este sério aviso, João Adelino Faria conclui a sua pertinente crónica do passado dia 5 de Maio.
A falar, de facto, a gente vai-se entendendo cada vez pior...
Não vale a pena citar por ora qualquer dos casos abordados na referido texto. Há um outro que particularmente me agride, e oiço-o constantemente, na boca de locutores, de sindicalistas, de políticos e de outros “profissionais” similares, tudo gente que devia escolher com cuidado e rigor a terminologia que usa em público. Trata-se da palavra aderência, usada em vez de adesão. A confusão, peganhosa, entre duas palavras completamente distintas no seu significado e na lógica do seu uso, faz-me pensar que deixámos de exercer qualquer espírito crítico (e até pedagógico) na escolha dos termos utilizados na comunicação.
Aderência e adesão são palavras arbitrariamente tomadas como sinónimos, talvez porque ambas exprimem uma ideia de ligação. Mas o primeiro vocábulo só deve ser usado quanto a coisas ou substâncias inanimadas, enquanto o segundo é próprio de pessoas vivas, distinguindo-se claramente os respectivos contextos.
A adesão a um partido político, a um sindicato ou a um clube desportivo, a uma doutrina religiosa ou a uma espiritual norma de vida é própria dos homens; a aderência do pneu ao piso da estrada, da sujidade à pele, do pó aos móveis, da pastilha elástica aos pavimentos ou da fita-cola ao papel é própria de matérias. Enquanto a adesão é voluntária, motivada, assumida e aprovada, mantendo-se de forma mais ou menos permanente, a aderência é meramente precária, concreta, apenas material e não definitiva.
Tudo isto é -ou deveria ser- óbvio, mas não é tido como tal. Entre nós a asneira campeia e faz lei...
A diferença a que João Adelino Faria alude no próprio título da sua crónica, ao distinguir as pessoas que hoje falecem daquelas que ontem morriam, também pode evocar as respectivas causas. É que ontem as pessoas morriam, sobretudo, com uma “nascença” ou com um “ar que lhes dava”; hoje elas falecem de cancro ou de AVC.
Talvez eu não esteja a ser suficientemente rigoroso naquela nomenclatura, pois, para ser mais fiel aos actuais relatos necrológicos, deverei dizer: um dos males que hoje mais atinge a Humanidade e constitui frequente causa de falecimento é, como se sabe, a “doença prolongada”...
A palavra, essa sim, está doente. Contaminámo-la nós todos, pelo pedantismo com que os tempos modernos carregam o nosso discurso bacoco, barroco, e muitas vezes de todo oco de significado autêntico e sincero. A simplicidade linguística, mesmo dispensando os absurdos acordos ditos ortográficos, vai-se perdendo sem remédio à vista.
As palavras e o seu sentido mais puro e mais nobre vão sendo uma saudade. Não disse um dia Fernando Pessoa que a sua Pátria era a Língua Portuguesa?
Mas isso foi há quantos séculos? Ou milénios?
António Martinó de Azevedo Coutinho