\ A VOZ PORTALEGRENSE: António Martinó de Azevedo Coutinho

quarta-feira, maio 30, 2012

António Martinó de Azevedo Coutinho

V – a bom entendedor, meia palavra basta

Evoquei George Orwell, um autor lido desde a juventude que sempre me impressionou. A sua obra máxima, Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, publicada em 1948, constitui um implacável libelo contra a opressão, sobretudo a intelectual.  Não se justifica aqui resumir o livro, aliás sobejamente conhecido, mas referir o sistema linguístico, a Novilíngua, que deriva da filosofia do poder ditatorial e constitui uma das suas principais armas, em tenebrosa trama genialmente elaborada pelo autor.  
A maquiavélica estrutura gramatical amplamente descrita por Orwell parece premonitória quanto aos processos usados por alguns detentores do poder político, quando empregam palavras para sobre estas instalarem a sua força. Basta recordar alguns simples exemplos, entre nós recentes, para percebermos como a ficção se torna realidade.
Lembremos o episódio do “desvio colossal” e da fantástica “explicação” sobre ele fornecida pelo ministro Vítor Gaspar; evoquemos a forma ardilosa como o “temporário” confisco dos subsídios se tornou “definitivo”; tentemos perceber o verdadeiro significado de ambíguas expressões como “ajustamento estrutural excepcional”, “restituição intensa”, “libertação de mão-de-obra”, “crescimento negativo da economia”, “diminuição positiva da pobreza”, “abrandamento do crescimento da despesa”... Mil exemplos se poderiam aqui reproduzir no sentido de entendermos claramente que, perante este quadro, talvez Orwell não passasse de um banal aprendiz da sua própria estrutura novolinguística...
Recordemos, para melhor compreendermos o processo, as próprias palavras do autor: “Saber e não saber, ter consciência da completa veracidade ao exprimir mentiras cuidadosamente arquitectadas, defender simultaneamente duas opiniões opostas, sabendo-as contraditórias e ainda assim acreditando em ambas; usar a lógica contra a lógica, repudiar a moralidade em nome da moralidade, crer na impossibilidade da Democracia e que o Partido era o guardião da Democracia; esquecer tudo quanto fosse necessário esquecer, trazê-lo à memória prontamente no momento preciso, e depois torná-lo a esquecer; e acima de tudo, aplicar o próprio processo ao processo. Essa era a subtileza derradeira: induzir conscientemente a inconsciência, e então, tornar-se inconsciente do acto de hipnose que se acabava de realizar. Até para compreender a palavra ‘duplipensar’ era necessário usar o duplipensar.
Duplipensar – Segundo Orwell, esta atitude implica a denominada duplicidade de pensamento, quando sabemos perfeitamente o que está errado e nos auto-convencemos de que está certo. Assim, o cérebro humano ganha a capacidade de guardar simultaneamente duas crenças contraditórias e acata ambas.
É à luz desta filosofia de comportamentos que poderemos “compreender” (e aceitar!?) como melhoraremos a economia acelerando os despedimentos; como deveremos empobrecer o País para que este saia da crise; como seremos mais cultos na medida em que mais escolas ou bibliotecas encerrarmos; como aumentaremos a nossa mobilidade portajando as estradas ou fechando as vias férreas; como resolveremos os esbanjamentos autárquicos eliminando freguesias; como equilibraremos o défice extinguindo (provisoriamente!?) feriados; como seremos mais prósperos abatendo barcos e tractores; como ficaremos mais saudáveis fechando hospitais; enfim, como viveremos mais felizes, encarando a austeridade como uma incontornável bênção imposta por outros.
Neste sistema político a palavra dispõe dum significativo papel. É pela lógica da palavra, quase sempre serena, que tudo se explica, mesmo o inatingível, que tudo se afigura lógico, mesmo o absurdo, que tudo se aproxima da facilidade, mesmo o impossível. Dizer hoje uma coisa e logo o seu contrário, cumprir hoje uma função e logo a rejeitar, formular hoje um compromisso e logo o contradizer, tudo é assumido em nome da inabalável certeza da infalibilidade.
Há pouco mentiam-nos, agora iludem-nos; não tenho certezas quanto à vantagem de um processo sobre o outro, quando ambos são gravosos e ofensivos para com a nossa dignidade.
Fiódor Dostoiévski (1821-1881), o grande escritor russo, nos seus Escritos Ocasionais, disse a este propósito: Uma grande parte da infelicidade no mundo tem sido causada por confusão e fracasso de se dizer a palavra certa no momento certo. Uma palavra que não é proferida no momento certo é prejudicial, e tem sido sempre assim. Porque é que uma classe da população deveria ter medo de ser honesta com outra? De que é que têm medo?
Por mim, sinto fazer aquilo que posso, aquilo que devo: exercer o meu modesto poder da palavra contra a poderosa palavra do poder.
António Martinó de Azevedo Coutinho