\ A VOZ PORTALEGRENSE: António Martinó de Azevedo Coutinho

quarta-feira, junho 06, 2012

António Martinó de Azevedo Coutinho

Não escrevo estas linhas porque perdemos no jogo do pontapé na bola contra a Turquia. Até foi a feijões...
Escrevo-as porque se tem criado um clima emocional altamente indesejável. Rodeou-se a nossa selecção de uma expectativa claramente superior ao seu perfil. O estágio de Óbidos decorreu e sobretudo terminou num ambiente de euforia com tonalidades medievais, entre muralhas e pendões, carroças engalanadas, ranchos de inocentes crianças a cantar o hino e patéticos discursos inflamados, bem recheados de juramentos e de promessas, a cumprir com juros nos campos da honra...
Novos cruzados dos tempos modernos, preparam-se os nossos “zeróis” para rumar à sua terra santa, apenas um pouco mais a norte do que a “clássica”, pelas distantes plagas polacas e ucranianas. Até levam por isso estampada nos seus uniformes uma emblemática cruz, como noutros históricos tempos.
Se deixarmos de lado as emoções (quem as tenha sentido, claro!), verificaremos que quase tudo foi feito ao contrário. Onde devia ter imperado o bom senso e a humildade acentuou-se o exagero e a arrogância. A visita ministerial ao estágio foi a cereja no topo deste azedo bolo na clara busca de uma patética e interesseira colagem onde devia ter permanecido uma legítima (e inteligente) separação de poderes, o desportivo e o político.
Nunca fui capaz de ligar o futebol à Pátria. Toquem o hino a rodos, desfraldem as bandeiras ao vento, enverguem todos os uniformes verde-rubros, enfim, exibam a simbologia nacional a propósito e também a despropósito, que nada disso me sensibiliza. Sobretudo, e afinal é o que aqui verdadeiramente conta, creio que a Pátria também não motiva os elementos da selecção portuguesa de futebol.
Pensemos um pouco, apenas um pouco, para não cansar. Os homens até há dias reunidos em Óbidos aí ostentaram a sua cara colecção de carros espampanantes e de mulheres sensacionais (pode trocar-se a ordem dos adjectivos que bate certo na mesma). Até aqui tudo seria normal, ou quase; o pior é que eles estão habituados (salvo raras e honrosas excepções) a trocar frequentemente uns e outras. A isto parece resumir-se a lista dos mais profundos objectivos dos “zeróis” lusitanos, desde que não lhes faltem os milhões obtidos a troco de umas regulares assinaturas. Então por que esperar que uma qualquer bandeira, um simples hino ou uma vulgar camisola os possam agora sensibilizar, entusiasmar, motivar?  
Pode ser que tudo corra muito bem nos jogos a doer, já que nada bateu certo no disputa dos feijões. Pode ser...
Nem sequer isso alteraria a minha forma de pensar, pois este pessimismo vai sendo confirmado sempre que está em causa a nossa representação futebolística de alto nível (!?) no confronto com os outros. Apenas recordo que até perdemos ingloriamente uma única, fácil e irrepetível oportunidade de sermos campeões...
O mais certo, e convém assumir esta possibilidade como a mais lógica, é a de regressarmos, sem honra nem glória, logo após a primeira fase, a de grupos. E isso nem deveria ser considerado como um resultado censurável, porque os nossos parceiros são poderosos e sempre valeram mais do que nós. Mas o clima criado deixou irreparáveis sequelas, pois inflaccionou-se o valor dos nossos atletas, como aliás vem sendo prática quase incontornável nos mais diversos sectores da vida nacional.
A crise restaurou os valores tradicionais que fizeram carreira no “estado novo”, conferindo renovadas roupagens aos três “efes” desses tempos de nula saudade: Fátima, fado e futebol. Quanto à primeira, basta recordar a tinta que fez correr a ainda recente peregrinação de Maio, quando se explicou a impressionante massa humana de peregrinos pela descrença dos “fiéis” nos homens e pela esperança de que noutras paragens, não terrenas, se encontre a solução para o crescente desespero colectivo. O fado -talvez seja conveniente usar a maiúscula- o Fado acabou de receber uma consagração cultural, e internacional, do mais alto nível. Quanto ao futebol -aqui conservo a minúscula porque não há forma mais insignificante de tratamento- o futebol impera, contraditoriamente, nos mimos trocados entre os Pintos das Costas e Luíses Filipes Vieiras, no censurável comportamento de certos elementos das claques do Benfica e do Sporting, no obsceno esbanjamento de milhões, na “qualidade” dos dirigentes federativos, liguistas e clubistas, na contínua dança dos treinadores, na “isenção” dos jornais diários e nos índices de audiência dos programas televisivos da especialidade, na “competência” dos árbitros... 
O pior, o pior de tudo, ainda bem pior do que toda esta triste figura atrás patenteada é o facto de, nesta moderna versão, o trio dos “efes” se arriscar a ser incompleto. Agora, passando a indesejável quarteto, oxalá não tenhamos de lhe juntar a... fome!
Isso, de facto, seria bem pior do que fazer uma passageira má figura nos campos do pontapé na bola.
António Martinó de Azevedo Coutinho